sexta-feira, 10 de outubro de 2008

Nosferatu, Uma Sinfonia de Horror - F. W. Murnau (16 Outubro, 21h30m, AMAC)


O número de compositores ou músicos que compôs ou interpretou peças musicais para o filme Nosferatu de F. W. Murnau (bem assim como as reacções que algumas destas execuções provocaram: recordemos João César Monteiro, em sinal de protesto, lançando-se contra a tela onde era projectado o filme durante uma sessão organizada nas actividades de Lisboa94 – Capital da Cultura) é, por si só, representativo do fascínio e influência que o mesmo continua a exercer na tradição cultural ocidental.
Arnold Schoenberg, Philip Glass ou o Kronos Quartet foram alguns dos que criaram ou interpretaram composições originais para a obra-prima de Murnau.
Aproveitando as comemorações do mês da música, o Cine Clube do Barreiro não quis deixar de se associar à extensíssima listagem dos que aceitaram este desafio que o próprio filme, através do seu enigmático silêncio, nos lança. Para tanto, convidámos o Jorge Moniz (Professor, Director pedagógico da Escola de Jazz do Barreiro, Director pedagógico do Conservatório Regional de Setúbal no ano 2000/2001) e demos-lhe carta branca. O Jorge (piano, percussão e direcção) compôs a música e, por sua vez, convidou o Valter Rolo (teclados) e o José Canha (contrabaixo).
Na próxima quinta-feira, 16 Outubro, vale a pena ir ver/ouvir o resultado.

…………………………………………………………..

Comecemos por um personagem singular que tanta especulação provocou: Nosferatu himself, aliás Max Schrek, aliás F. W. Murnau, aliás… Quem é esta estranha personagem que tanto intrigou Ado Kyrou, que dizia num arroubo de irracionalismo que poderia ser Nosferatu em pessoa (hipótese que tem a seu favor o fascínio de toda uma tradição do fantástico: a que coloca personagens irreais no interior da rotina quotidiana), e outra, também avançada por Kyrou e retomada por Stan Brakhage num texto incluído na obra de M. Bouvier e J-L Leutrat Nosferatu, e que defende que Nosferatu poderia ter sido interpretado pelo próprio Murnau (hipótese essa menos contestável, para além de ter a seu favor a tradição romântica de identificação do personagem com o autor, dado que Murnau foi também actor, e possuía a mesma silhueta alta e esguia que identificava Nosferatu, a que se poderia juntar toda uma tradição cultural e a influencia da escola de Max Reinhardt que deixou as suas marcas nos trabalhos de Murnau).
Bouvier e Leutrat incluem no seu trabalho sobre Nosferatu, uma pequena biografia desse estranho personagem que parece ter sido Max Schrek (de quem nada consta, nem mesmo na exaustiva Enciclopedia dello Specttacolo). Concretamente diz-se, nesse livro, que se julgou mesmo que o papel fora interpretado por Emil Jannings (?), tendo Edgar Ulmer dado a entender que poderia ter sido desempenhado por Hans Ramo, argumentista e amigo intimo de Murnau. Tudo parece indicar que Max Schrek pode ter sido um nome de empréstimo, ou paródia, apesar de Otto Falckenberg falar de um Schrek na sua autobiografia Mein Leben – Mein Theater: Nascido em 1879 em Berlim e falecido em 1936 em Munique, casado com a actriz Fanny Normann. “Trabalhou no teatro principalmente com o Munchener Kammerspiel de 1919 a 1936, com uma interrupção de quatro anos em que colaborou com o Staatstheater Berlin. Trabalhou em numerosos filmes entre os quais: Der Richter von Zalamea de Ludwig Berger (1920), Die Strasse de Karl Grune (1923), Die Finanzen des Grossherzog de Murnau (1923) e Dona Juana de Paul Czinner (1927)”.
Talvez que, no fim de contas, a verdade seja assim tão prosaica, mas pode-se preferir, muito justamente, qualquer das outras explicações fantásticas. Seja como for o interprete e personagem da obra prima de Murnau parecem formar um todo em que de novo se poderiam utilizar as palavras de John Ford :”When the legend becomes fact, print the legend” (The Man Who Shot Liberty Valance).
Para além da silhueta esguia e alta a que nos habituaram as fotografias de Murnau, outros factos culturais e pessoais poderiam justificar essa identificação. A muitos níveis Nosferatu é de facto Murnau e o mistério que rodeia o filme é digno de qualquer biografia romântica, escola em que, mais do que qualquer outra, se poderia incluir o realizador.
(…)
Albin Grau, autor dos cenários de Nosferatu conta uma história tão fantástica como a do filme, que ouvira a um companheiro de armas nas trincheiras em 1916, na Sérvia. O narrador, originário dessa região dava voz ao folclore local contando que o seu avô fora um “untote” (um “não morto”) por ter falecido sem sacramentos, encontrando apenas a paz quando um padre local atravessou o corpo incorrupto com uma estaca. E apresentava como prova o registo “oficial” do acontecimento. Mais do que a quaisquer origens históricas (todos os mitos têm algo de fidedigno), é às lendas e ao folclore local que se devem ir buscar as influências de Nosferatu utilizando como veiculo o romance de Bram Stocker, Drácula, e como espírito o romantismo alemão. Aliás é este que domina inteiramente a obra de Murnau. O Livro de Stocker é tão-somente o pretexto para Murnau criar a sua obra-prima, manifestação no cinema de toda uma literatura que dominou a primeira metade do século XIX.
Apesar de todo o prestígio (merecido) de Der Letzte Man é fora de dúvida que Nosferatu forma com Tabu o núcleo de toda a obra de Murnau, o par em que mais se exprime a personalidade do seu autor, aqueles em que, consciente ou inconscientemente Murnau pôs mais de si próprio. Deste ponto de vista a mais interessante abordagem a Nosferatu vem, sem dúvida, de Stan Brakhage que, dentro de um espírito “camp” procura encontrar as referências homossexuais conhecidas do realizador alemão no percurso deste filme.
Se considerarmos, como atrás se disse, que este é o filme mais pessoal do seu autor, a interpretação de Brakhage é muito sugestiva. Inclusive na referência à origem do nome vampiro (Nosferatu = leite derramado) que parece referir-se aos “jogos particulares” na mansão de Max (Schrek) Reinhardt tal como o nome do actor. Pode ser contestável, mas a argumentação de Brakhage é convincente.
Se virmos Nosferatu desta perspectiva, é evidente que a sequencia mais importante é aquela que decorre no castelo de Orlok entre o vampiro e Hutter. Antes de aí chegarmos vejamos um pouco mais de perto tão ambígua personagem, que é, sem sombra de dúvida, a mais feminina do filme: é ele o primeiro que nos é apresentado ademanes pueris, como um Adónis consumindo-se na sua imagem. A seguir é Ellen numa imagem também ela capital: brincando com um gato mostra a mesma faceta manipuladora que revelará Orlok. Murnau não ilude ninguém desde o começo: Ellen e Nosferatu são complementares (relação que apenas Francis Coppola valorizou no seu Drácula de Bram Stocker), ambos fazem parte do grupo dos sedutores. Mas a aproximação de um e outro é ainda mais flagrante na semelhança física. Ellen é uma mulher seca e etérea, entre a aridez do corpo sem vida e uma projecção fantástica. Frente a ela o corpo de Hutter exibe de forma quase obscena a sua sensualidade. Se a imagem vos causa algum prurido, reparem então na referida sequência do castelo. Aquilo a que assistimos é uma imagem perfeita de uma sedução consentida. Da parte de Hutter há uma reacção que vai da curiosidade ao medo do seu desejo. Desejo e medo de ser violado é o que nos surge atrás da sequência da ferida na mão com o derrame do sangue e o desmaio (forma de aceitar a posse negando-a). Em simultâneo, numa montagem paralela genial, Murnau mostra-nos Ellen reagindo ao mesmo acontecimento, como a outra face de Nosferatu. A colagem de dois planos mostra esta identificação de forma perfeita: Hutter grita (julga gritar), Ellen levanta-se da cama de braços estendidos na direcção de … Nosferatu, que é quem responde ao seu apelo. O acto de posse é interrompido porque Nosferatu encontrou através da distância o seu outro eu, o único capaz de o aniquilar possuindo-o, que é o sentido dos últimos e geniais planos.
Vítima do desejo dos dois, Hutter ficará inerte durante o resto do filme. Não é só apenas no espaço de tempo em que ainda fica no castelo, só reagindo de forma instintiva a partir da saída de Orlok e fazendo mecanicamente o trajecto de regresso. De facto a personagem de Hutter praticamente desvanece-se a partir desse momento servindo apenas de mensageiro entre Nosferatu e Ellen, os dois num só. A partir da saída de Orlok do seu castelo em direcção a Bremen, todo o filme mais não é do que uma busca e espera. Busca de Nosferatu, espera de Ellen. O plano mais surrealista da história do cinema (como já foi chamado), aquele em que Ellen se encontra à beira-mar rodeada de cruzes é a imagem dessa espera que não é evidentemente a de Hutter dadas as suas características fantásticas. As imagens siderais de Nosferatu tripulando o navio dos mortos é a busca que vai levar ao aniquilamento, pois de um navio fantasma se trata.
Seja porém de que ponto de vista se encare o filme de Murnau, Nosferatu surge como uma das obras-primas indiscutíveis da história do cinema, aquela em que melhor se manifesta o fantástico nas suas relações com o real através de uma riqueza simbólica que só terá paralelo mais de trinta anos depois em The Night Of The Hunter de Charles Laughton.
Num e noutro é também de ogres e de desejos recalcados que se trata.

Excerto do texto de Manuel Cintra Ferreira em “100 dias 100 filmes”, edição da cinemateca portuguesa no âmbito das comemorações de Lisboa94 – Capital da Cultura.

Sem comentários: