sexta-feira, 17 de outubro de 2008

Não Estou Aí - Todd Haynes (23 Outubro, 21h30m, AMAC)


Do you understand, mister Jones?

Este é o terceiro dia em que abro uma página em branco e tento aprisionar Bob Dylan nela. Observo imóveis as potenciais letras no teclado. A pauta é: o filme I’m Not There, de Todd Haynes, que não é uma biografia, mas uma especulação sobre o que seja o seu objecto, partindo da ideia de que não é uno, mas vários: não se trata de um Dylan, e sim muitos. No filme de Haynes, Dylan é dividido: poeta, profeta, fora-da-lei, farsa, estrela da electricidade. Cada um desses vive seu enredo particular, entrecruzado com a história dos outros; um mosaico, a interpretação do que seria o cantor americano.
Penso que para tratar dessa pauta preciso explicar as diferenças de recepção desse filme. Há o espectador que conhece as músicas. O filme é em boa parte feito pra ele. As canções são tocadas inteiras. Letra e enredo do filme se tocam, se interpenetram, servem de explicação e referência uma para a outra. Hoje ouvir algumas faixas me faz lembrar claramente das cenas que vi no cinema, e acabo sendo levado a interpretá-las segundo o contexto que o director escolheu. É um ensaio sobre Bob Dylan e como todo bom ensaio ele amplia a visão que o público pudesse ter.
Depois, há o espectador que gosta principalmente de cinema. Há também bastante esmero e acredito que o filme dialogue com algumas referências cinematográficas assim como faz com as músicas. Repare em como cada personagem é retratado. A faceta mais em oposição ao mundo, o poeta, se trata de um rapaz num interrogatório. Não se pode ver quem o interroga, e ele responde com desprezo e descaso. O profeta é o que cria os poemas que explicam o mundo, e sua história se conta com formato de documentário. O grupo de entrevistados fala sobre ele, fotos são exibidas. Ele nunca fala directamente. O que se retira já a partir daqui? Cada modo de filmar indica, representa, emula: 1. o jeito com que o público tratava o artista; 2. como Dylan se sentia.
E ainda há um terceiro, mas deixemos para mais tarde. Continuando: o fora-da-lei é um velho que desligou de qualquer coisa. Ele vive em uma cidade inóspita, com pessoas comuns e problemas quotidianos; cidade essa que lembra a idealização, o isolamento, a fantasia que existe em Peixe Grande, de Tim Burton. Existem os mesmos personagens pitorescos e a transformação da vida por histórias (no caso de I’m Not There, máscaras). A farsa é um homem sem interesse por política ou seriedades. Sua história é filmada de modo parecido com seriados americanos comuns. O último, a estrela da electricidade, é onirico, introspectivo, com grande foco na forma. São aspectos coerentes, já que se trata do desacordo de um artista com o que se exige dele. Uma referência directa talvez seja a cena em que Dylan está preso pelo pé, como um balão, balançando ao vento, que é mais ou menos a mesma cena de Fellini 8 ½, em que o artista é laçado de volta à terra.
O terceiro tipo de espectador tem dois lados opostos, mas muito parecidos. Há o fã, aquele está ali querendo saber, querendo entender efectivamente Bob Dylan e o não-fã, o que não sabe nem se importa tanto, só exige do filme e do artista algum prazer. E é a partir daqui que podemos ver o terceiro (de novo) efeito dos modos de filmar: dentro deles está uma espécie de manifesto que refuta esses quatro tipos de espectadores. Se o público consegue uni-los no mosaico, entende; senão, se iguala a todos os personagens que se opõem à Dylan. Nós que não entendemos somos os interrogadores do poeta. Os produtores do documentário sobre o profeta. O capitalista que quer construir ferrovias sobre o quotidiano de sonho do fora-da-lei. Somos o crítico de música que deseja saber a essência da poesia e do artista. Tanto o filme quanto Dylan nos despreza.
Eles parecem dizer que a atitude de tentar entender é sempre reducionista, já que o que fazemos em verdade é pressionar o outro para que exista de acordo com os termos que façamos para ele. Ponto comum entre todos os personagens fragmentados: nenhum deles faz o que se espera dele; sempre incluído, mas alheado. Sempre se desligando das coisas e pessoas. Se Dylan abandona (ou é abandonado) pelos seus fãs, é para preservar sua identidade. Em mais uma referência, o primeiro show em que usa guitarra é filmado como um massacre de metralhadoras, contra o público, como Sid Vicious, baixista do Sex Pistols, dispara contra a plateia e subverte uma canção tradicional. Nesse sentido, é só coerente o desprezo e a contestação que Dylan oferece às teorias que fazem dele ou do mundo. A cena de “Ballad of a Thin Man” representa tudo isso. Tem até mesmo uma explicação didáctica. Assista.
No quarto dia percebo só não posso aprisionar Dylan na folha em branco. Posso retirar muito pouco dele a partir das letras, posso entender menos ainda a partir do filme que por si já é um recorte feito por uma pessoa. Inclusive esse texto é um despropósito, nos termos do filme. Recrio as coisas; não as entendo. As personalidades fragmentadas são não caminho para conhecer ou gostar de um artista que admiro, mas arquétipos com os quais minha personalidade se assemelha. Onde o poeta, onde o profeta, onde o fora-da-lei, onde a criança que foge, onde a farsa, onde o rebelde em mim? É isso que busco. Histórias de além dos meus limites. As canções cantam essas coisas, mas elas o fazem por seu criador, nunca por mim, e seria só egoísmo exigir o contrário.

In obacamarte.blogspot.com

Sem comentários: