terça-feira, 31 de março de 2009

A Valsa com Bashir - Ari Folman (2 de Abril, 21h30, AMAC)

Ficha Técnica

Título Original: Vals Im Bashir
Realizador: Ari Folman
Ano: 2008
País: Israel / Alemanha / França
Duração: 90 min.
Classificação: M/16
Sites: IMDB | PTGate | Oficial

Crítica

A Valsa com Bashir é a reconstrução da memória da guerra de 1982 no Líbano. Começamos com o pesadelo contado no café a Ari Folman: Boaz Rein Buskila era um jovem soldado israelita e, sendo incapaz de atirar sobre humanos, foi-lhe incumbida a missão de matar os cães do lado libanês que, ladrando, davam conta da chegada de estranhos; o mandato, que fora executado por 26 vezes e há mais de 20 anos, também não havia agradado sobremaneira a Boaz e perturbava-lhe agora o sono – todos as noites sonhava ser perseguido por uma matilha de não mais que 26 cães. Porquê agora? E do relato Boaz passa a interpelar Folman – do que se lembra ele de Beirute, 1982?

O confronto é fracturante para a história do Médio Oriente. Foi em Setembro desse ano, entre os dias 16 e 18 para ser mais exacto, que sucedeu o massacre nos campos de refugiados de Sabra e de Shatila. Bachir Gemayel, cristão falangista, aliado dos israelitas e então recentemente (23 de Agosto) eleito Presidente do Líbano, tinha sido assassinado a 1 de Setembro. E embora os elementos das milícias palestinas já não se encontrassem em Sabra e Shatila (tinham sido evacuados há duas semanas para a Tunísia, por graça de um acordo entre palestinos e israelitas), os cristãos invadiram os campos com a finalidade de os purgar dessa gente ausente, acabando por matar cerca de três mil civis. Da complacência do exército israelita viriam, como consequências, a demissão do ministro da Defesa, Ariel Sharon (embora não o tenho impedido de chegar a primeiro-ministro, em 2001), e na concessão definitiva aos palestinos de alguns dos terrenos ocupados pelos israelitas na Palestina.

Isto vem nos livros de Geopolítica, com o seguinte o preâmbulo: em Junho de 1982, o exército israelita invadiu o Líbano, com o intuito de ocupar uma faixa de 40 quilómetros do sul do país (acabando a ocupar Beirute), de forma a proteger as cidades do norte de Israel dos bombardeamentos constantes provindos daquele lado da fronteira. As fotografias dos soldados nos tanques, passando paisagens lindíssimas, comendo batatas fritas, brincando uns com os outros – isso é o que não vem nos livros. Isso de ser pessoa, de ser indivíduo e não uma massa indiferenciada que tanto segue ordens como já não faz ideia do que o move, não faz mais ideia do que um assustado desejo de sobrevivência. Isso de ser gente, mais do que uma fatal carta postal – e ainda que menos que um pensador livre. Aquando da conversa no café, Folman, que também cumpriu serviço militar em Beirute, 1982, não se lembrava de nada. Mas a noite veio, o sono, e a memória não perdoou: lá estava ele mais três companheiros, nus, a boiarem no mar, olhando a cidade a ser destruída. Mais não sabe. E o que passamos a acompanhar é a busca do realizador por essas memórias de gente, quase sempre por antologiar, através de várias conversas e entrevistas.

A imbecilidade da guerra é-nos mostrada, verdade – mas não precisamos que Folman venha dizer-nos o que pensar, a sua força não é essa. É antes a sua parcialidade documental (não sejamos ingénuos, que uma coisa e outra nada têm de incompatíveis), os mecanismos pessoais de cada um para a defesa de tudo quanto se vai passando no terreno: a morte eminente, a morte por um azar ou sorte e a namorada que ficou para trás, a morte consumada nos companheiros, nos amigos, a ilusão da invencibilidade quebrada, os tanques tombando. Tudo do lado do atacante. Trata-se de um objecto artístico da estirpe de um Se Isto é Um Homem, de Primo Levi, mas com os acontecimentos vistos de posições diferentes. E se o sadismo e a cegueira são facilmente desbaratados nas costas dos mais fortes, não é de somenos importância o reconhecimento de que nas massas caminham indivíduos – e eis o que o filme se demora a mostrar.

A Valsa com Bashir é, antes de qualquer outro adjectivo, intemporal. O facto de estar datado e situado em nada o altera. Depois, é cru e humanista e existencialista e freudiano. É uma obra que suga todo o amplexo do ar. Não é uma revelação, porque o mundo se tem posto a jeito de levar bofetada tamanha e porque já andávamos, desde 1991, avisados da sensibilidade deste realizador israelita a quem chamam Ari Folman. Cannes fartou-se de aplaudir o filme; em Israel foi reconhecidíssimo; e o resto dos cinéfilos estão a aperceber-se e a agir em conformidade. Há quem fale em Óscares ousando nomeá-lo para melhor filme, ou colocando-a na categoria que Wall E já ganhou, de melhor animação. Porque tecnicamente – e fugindo ao actual cânone 3D da animação – esta valsa é também muito boa, ainda que o detalhe se vá perdendo à passagem dos minutos. Talvez por ter demorado quatro anos a realizar, ultrapassando em dezassete vezes o orçamento previsto. Mas esta é uma daquelas situações em que vale cada um dos cêntimos. É ver o trabalho do ilustrador e director de arte David Polonskey e do director de animação Yoni Goodman. A forte componente fantasista da memória a que a animação serve na perfeição.

Se isto é um filme, terminamos, o homem tem de se levantar.

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