segunda-feira, 3 de março de 2008

Era Preciso Fazer As Coisas - Margarida Cardoso (6 Março, 21h30m - AMAC)



Era Preciso Fazer as Coisas, de Margarida Cardoso, é um documentário de que vale a pena falar, sobretudo na sua condição de filme documentário. Pretendendo dar-nos um retrato do que foi a preparação da encenação da peça “O Tio Vânia”, de Chekhov, por Nuno Carinhas,este filme, premiado na última edição do festival doclisboa (Grande prémio Tobis para melhor filme português de longa-metragem e Prémio Midas para melhor filme português presente no festival), vai muito para além da lógica de making-of e, quase sem grandes pretensões e aparatos,inova.
Misturando várias fontes (entrevistas com os actores, com o encenador,leituras de textos da peça, filmagens directas dos ensaios), Margarida Cardoso cria um filme sobre teatro em que a primazia é dada ao fílmico,ao cinematográfico. Longe da lógica jornalística ou de reportagem de outros filmes presentes no festival, Era Preciso Fazer as Coisas tem preocupações estéticas fortes, fazendo com que o seu interesse esteja muito para além do tema – basta pensar que nós espectadores nunca chegamos a ver a peça, a encenação final. Aquilo a que na realidade assistimos são aos actores e encenador (e depois espectadores, pelos olhos da realizadora) encerrados num limbo criativo que os oprime e liberta ao mesmo tempo. Entramos nessa “bolha” que é o espaço físico do Teatro Carlos Alberto do Porto (onde decorreram os ensaios), mas que são depois o espaço e o tempo virtuais do filme, e experimentamos,sentados na sala, a angústia dos actores que se preparam. Vivemos,naquelas imagens, a magia da construção de um objecto artístico (produto cultural, diríamos hoje?) dentro de um mundo muito próprio que é esse da criatividade, da criação. E assim assistimos a um filme a que chamamos documentário, mas que ultrapassa em muito essa designação.

É que o filme de que aqui falamos. . . é um documentário, sobre o quê?
“Actores e encenador procuram o caminho para a construção de qualquer coisa em comum.”, lemos na sinopse oficial do filme. “Não estaremos todos à procura de sentido?”, aparece mais adiante. Todos sim.
Todos, não só actores e encenador. Todos, realizadora deste documentário incluída e, por acréscimo, aqueles que assistem ao filme. Todos aqui estão em processo de construção de um sentido próprio, que vai sendo comum, mas que, sobretudo, é progressivo. Decorre agora. Em todos os “agoras”, em todos os tempos deste filme: o tempo presente que foi o dos ensaios, o da realização do filme, o do visionamento em
sala.
De facto, se é verdade que o tempo e o espaço do filme são os da preparação, do ensaio, é preciso fazer notar que a linha condutora do filme não é a narração dessa preparação de uma peça, que as entrevistas não são montadas por ordem temporal mas inter cortadas, que a cronologia deste processo criativo não foi respeitado. Há ensaios, reuniões, provas – e há o antes do espectáculo, o muito antes e o imediatamente antes, tudo junto. Mas o que une o filme e lhe dá fôlego é esta
construção "em tempo real"de um filme que vai ganhando forma, que vai adicionando elementos à força da sua estrutura. Um filme que, partindo do espírito humano, esclarece o cinema, que por sua vez vai, ao mesmo tempo, esclarecendo o espírito humano. É que de facto, temos a sensação que a realizadora é também ela aspirada, transportada para este não-lugar a que chamamos processo criativo, e que é o cinema (o documentário, as suas técnicas e pressupostos), e não o teatro, que a
vão fazendo avançar.

Margarida Cardoso lança-se na construção de um filme que quer falar da criação teatral, mas é como se essa mesma realidade de que quis ser testemunha lhe devolvesse pistas para a construção de um filme.
Neste sentido, a realizadora parece fazer suas as palavras de Edgar Morin e pretender "compreender a sociedade com a ajuda do cinema, e ao mesmo tempo, compreender o cinema com a ajuda da sociedade".
Não é uma qualquer sociedade que a realizadora procura compreender; e não é um cinema generalizado que usa. É uma sociedade das artes,da criatividade, da criação. É um "espectáculo mágico de metamorfoses"(definição que Morin usa para o cinema, mas também conceito comum de teatro) que aqui se faz cinema. São os espíritos (dos actores,das personagens, dos cenários, da cidade do Porto que respira por detrás daqueles muros) que, deixando a sua origem teatral, se vêm fazer imagem, perante nós, neste filme. Um filme que, enclausurado no seu género que é o da nao-ficçao, é capaz de ultrapassar as ortodoxas fronteiras do conceito de documentário para se deixar resvalar cada vez mais para o "poético", de uma forma muito menos óbvia que
aquela apenas considerada no seu tema (a encenação para teatro - e que outra coisa pode ser mais poética?).
E é aqui que o cinema se faz “dupla consciência”. A realizadora que observa uma realidade. A realidade que lhe devolve o seu filme. E como este ciclo não termina aqui, o seu filme não fala só sobre a realidade,mas fala também de si próprio. E temos nesta metáfora da criação artística uma consciência bem acordada que é aquela do artista enquanto cria. Eu filmo os angustiados criadores na sua bolha sem tempo e sem espaço. Eu recebo dessa situação generalizada de angústia a autorização para entrar nessa mesma bolha. E crio. . . e recrio, e devolvo, e recebo. A condição de quem filma e de quem é filmado é a mesma: ambos criam. A relação com o real é nova para a realizadora. A relação com a fantasia é nova para o espectador. Porque neste filme há dois mundos imaginários: o de uma primeira criação (a teatral), o de uma segunda que dela nasce (a cinematográfica). E o documentário, perante tais premissas, cresce, expande-se, permite-se novos géneros e novos temas. A Antropologia, no documentário, não remete só para o conhecimento do homem, mas também para o entendimento do próprio documentário. Talvez valha a pena também dizer que era preciso fazer um filme (tão bonito) como este.

Texto de Mariana Liz, in Doc On-line, n.03, Dezembro 2007, www.doc.ubi.pt, pp. 160-162

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