quinta-feira, 15 de outubro de 2009

Sujidade e Sabedoria - Madonna (22 de Outubro, 21h30, AMAC)


Ficha Técnica

Título Original: Filth and Wisdom
Realizador: Madonna
Ano: 2008
Países: Reino Unido
Duração: 81 min.
Classificação: M/16
Sites: IMDB | PTGate

Crítica

"Quando morrer, irei directamente para o céu. E vais questionar-me porquê. Tentei o suficiente? Não. Partilhei o suficiente? Nem por isso. Fui suficientemente humilde? Definitivamente, não. 'O que te faz então estar tão seguro de que irás para o céu?', perguntarás. E eu dir-te-ei: porque eu disse a verdade." Quem nos brinda com tal sainete, cigarro numa mão, garrafa de cerveja na outra, e em grande plano, é o líder carismático da banda nova-iorquina Gogol Bordello, Eugene Hütz, amigo de Madonna e, nota-se logo, mal ele abre a boca, ucraniano de gema. É uma criatura e peras. Uma daquelas que, apesar da sua queda para o grotesco, poderia jurar pela alma da mãe que é o tipo mais genuíno do mundo. A quem se dirige ele naquele diálogo, muitos dirão, de bradar aos céus, e que parece vir do além? A Deus? Ao espectador? A ambos, provavelmente. Mas pouco importa, que a coisa não se quer muito séria. Nem intelectual. Um aspecto, contudo, parece-nos certo: não é Eugene, nem a sua personagem (já falamos mais dela) que nos dirige a palavra naquela espécie de confessionário "Big Brother". Quem a nós se dirige é a autora deste filme, aquela a que outrora chamaram de material girl, Madonna .

Resolveu fazer um filme, a Maddy . Estreou em Berlim 2008 e caiu agora nas salas portuguesas, um pouco de pára-quedas, sem que ninguém estivesse à espera. Talvez não haja nem muita sujidade nem muita sabedoria aqui, mas é preciso, desde já, sublinhar uma coisa: "Filth and Wisdom" (no original) é tudo menos um filme de meias-tintas. Não deixará ninguém indiferente. E trata-se ainda, ideia que tentaremos defender, de um filme raro pelo modo como ataca o género autobiográfico no cinema contemporâneo.

Mas antes de entrar no filme, queremos fazer um desvio e falar dela, da Ciccone, que 'veio cá de baixo' e subiu a pulso, para nos ficarmos por essa parte do corpo, até à sua coroação de 'rainha da pop' à escala terrestre. Se a música lhe foi generosa como a nenhuma outra artista da sua geração, o cinema, nem por isso. Madonna, como tantas outras, tentou no cinema uma carreira paralela aos seus êxitos colossais na indústria discográfica, uma carreira que fixasse no celulóide a extraordinária bailarina que ela também é, mas nem na sua boom decade, a dos anos 80, o cinema lhe foi grato.

Muitos se lembrarão ainda de "Desesperadamente Procurando Susana" (de 1985, realizado por Susan Seidelman), nos tempos em que a cantora era casada com Sean Penn, e Lloyd Cole, cínico imparável, chamava a este último o "Mr. Madonna". Muitos se lembrarão também do simpático, mas nada mais do que isso, "Who's That Girl" (1987, de James Foley), que também foi título de um dos seus maiores êxitos, e sobretudo de "Dick Tracy" (1990), em que Madonna 'flirtou' com Warren Beatty nesse pulp movie. Depois, já anos 90 a dentro, veio o filme com ela de que mais gostamos, o único em que a cantora e actriz conseguiu ser como se queria ver - a si própria -, e que é um documentário, "Na Cama com Madonna". Veio a aventura de basebol ("Liga de Mulheres", pela mão de Penny Marshall), um delírio musical que encheu o olho ("Evita" de Alan Parker) e mais um punhado de títulos. Que não fizeram história. É que Hollywood já tinha a sua loura para os anos 90: chamava-se Sharon Stone. Madonna, com menos 10 centímetros, era demasiado mignone para a competição. De Stone, nada tinha, e todos sabemos bem o que ela recordava: era Marilyn.

Aquela que foi testemunho e, em simultâneo, epitáfio do velho star system cinematográfico, quando as stars ainda eram intocáveis. E faziam chorar. Só que Marilyn, para além do cinema, foi canonizada pela pop art de Andy Warhol. E Madonna? Pela MTV. Isto faz toda a diferença. Nos tempos de Madonna, os tempos do vídeo, já não havia stars como a que ela poderia ter sido. Chegou tarde de mais. Ou seja, tudo o que cinema lhe deu só lhe foi prejudicial.

Porém, em 1987, o mundo inteiro perguntava: "Who's that girl?" Vinte e dois anos depois, talvez "Sujidade & Sabedoria" nos dê a resposta. E foi quase em segredo, sem qualquer pressão mediática, que Madonna se atirou para esta ficção pessoal e intimista que, afinal, só fala dela, por portas travessas. Madonna não aparece no ecrã. Na Londres que escolheu para viver, procurou os bas-fonds ideais para recriar aqueles tempos açucarados de 'Like a Virgin' que a deram a conhecer ao mundo a bordo de uma gôndola pelos canais de Veneza. E voltamos a Eugene Hütz, que, de Madonna, é afinal uma espécie de alter-ego eufórico. Filme de amigos, este? Também, só podia sê-lo.

Em "Sujidade & Sabedoria", a personagem de Eugene, A.K., é um imigrante ucraniano. Quer ser vedeta internacional do cançonetismo cigano-punk. Enquanto não chega o estrelato, ganha a vida como gigolo sado-masoquista. A.K. divide o apartamento com duas raparigas, Holly (Holly Weston, uma estreante) e Juliette (Vicky McClure, que já conhecíamos dos filmes de Shane Meadows). Completa-se com elas o trio de losers à procura de um lugar ao sol: Holly quer ser bailarina clássica mas é forçada a trabalhar num bar de striptease; Juliette sonha em salvar crianças órfãs em África mas, longe das missões de caridade, não consegue mais do que um trabalho precário numa farmácia em que sensibiliza os clientes para a bondosa causa. Todos eles, A.K., Holly e Juliette querem fazer dos sonhos realidade, num filme coral que, como já se disse, é mais permeável ao grotesco do que ao burlesco.

O trash e o stress entranham-se, contudo. Misturam-se o sexo, a música (dos Gogol Bordello, de Hütz, que não é para todos os gostos...), o misticismo de pacotilha e a ambição material, num ambiente um bocado circense e ingénuo, donde Madonna retira a sua sentença moral: "Tens que sofrer bastante se queres ser alguém na vida." É a sua própria experiência que ecoa no filme a cada fotograma. E o resultado cinematográfico, se não é brilhante, é pelo menos alheio ao conformismo.

Modéstia é coisa que não rima com Madonna. Quando ela declarou, em Berlim, no ano passado, que "sempre fui inspirada pelos filmes de Godard, Visconti e Fellini..." só podemos sorrir. Mas Madonna disse mais: "...espero realizar um dia qualquer coisa que se aproxime destes génios". Ao dizer tal coisa, ela sabe que não tem um grande filme nas mãos para defender. E tanto melhor assim, pois é esta sinceridade que nos interessa. Passamos a vida inteira a ver biopics heróicos. Que haja pelo menos um, e logo travestido, a assumir o contrário - que a vida, por vezes, também é uma merda.

"Sujidade & Sabedoria" é um filme de caprichos e de estereótipos suaves. Todos eles tratados com uma afectividade e uma atenção inesperadas da parte de alguém que está hoje nos píncaros do céu e não esqueceu o inferno, como Madonna. Não pensamos só nos três heróis do filme, mas em todo aquele meio londrino sarcástico, recheado de bailarinas strip e de intelectuais literários, imigrantes indianos, judeus, ciganos e homossexuais refinados a toques de Oscar Wilde, todos eles caricaturas alinhavadas num filme de vinhetas, quase sempre desequilibradas. Aquilo parece tudo um sonho molhado, ou uma comédia non sense, como as de Richard Lester dos anos 70.

No fundo, "Sujidade & Sabedoria" é o filme definitivo sobre a persona de Madonna e, em simultâneo, o filme do seu próprio escárnio. Tudo é paradoxal, veja-se a 'sujidade' e a 'sabedoria', e onde não há a primeira, não pode haver a segunda, diz-nos Hütz, deitado na banheira, a recitar os seus nacos de prosa. Como dizia Madonna (no 'Into the Groove'), "at night I lock the doors where no one else can see", mas nem frase tão cinematográfica lhe bastou para que ela vingasse no cinema, como Marilyn. Nem a sua vida foi, felizmente para ela, vale de lágrimas que se comparasse. Madonna pode até estar segura, like a prayer, que o céu está à sua espera. Pela primeira vez, sem aparecer no ecrã, conseguiu expor o preço que pagou pelo seu êxito, esse true blue que é o testemunho do seu tempo e das estrelas desencantadas que dizem fuck, doces por fora e amargas por dentro, porque este filme não fala de outra coisa. E é isso que o torna comovente.

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